Oleg Almeida: poeta e tradutor
Entrevista publicada no site da Editora Lume em 03 de março de 2024:
1) Como chegou o convite de participar da Editora Lume e como foi a escolha dos primeiros livros da Coleção?
Oleg Almeida: O líder da Editora Lume, Frederico Machado, solicitou minha atenção em dezembro de 2023, bem na época natalina. Tivemos uma conversa longa e frutuosa. Discutimos, entre outras coisas, a possibilidade de produzir uma coleção de livros pouco conhecidos ou, às vezes, praticamente desconhecidos no Brasil, mas nem por isso menos valiosos. Então veio à tona uma extensa lista de obras literárias que poderiam ser atraentes para nossos amantes da literatura clássica. Frederico aprovou duas daquelas obras: Herói da nossa época, de Mikhail Lêrmontov, e As últimas páginas do diário de uma mulher, de Valêri Briússov. Quanto a mim, já fazia bastante tempo que me apetecia traduzir algo incomum, algo que ainda não fosse banal aos olhos do público leitor, razão pela qual não demorei a encarregar-me de ambas as traduções. Agora que estão prestes a entrar no prelo, acho que fiz um bom trabalho!
2) Qual a importância de Herói da Nossa Época para a literatura mundial? E para o mercado brasileiro esse lançamento?
Oleg Almeida: Digamos que Herói da nossa época não está em cartaz no Brasil. Entretanto, é um dos melhores romances que um autor de expressão russa jamais tenha escrito. Apesar de relativamente curto, goza de um prestígio incontestável no ambiente russófono e muito além dele, chegando a disputar o pódio das letras românticas com Nossa Senhora de Paris (O corcunda de Notre-Dame em sua versão brasileira), de Victor Hugo, e A confissão de um filho do século, de Alfred de Musset. Por um lado, contém um retrato imparcial, amiúde chocante, de toda uma “geração perdida” que se formou na Rússia durante o truculento reinado de Nikolai I; por outro lado, transborda de finas observações psicológicas que nos ajudam a compreender a natureza da personalidade byroniana, tal como se desenvolveu no solo russo, e do chamado spleen pelo qual ela se via irremediavelmente afetada. Nesse sentido, o livro de Lêrmontov continua sendo interessante nos dias de hoje, pois, afinal de contas, “nada há que seja novo debaixo do sol”.
3) Além de tradutor, você é poeta e ensaísta. Como você vê o mercado editorial brasileiro e o que espera com esses lançamentos que está traduzindo para a Editora Lume?
Oleg Almeida: O mercado livreiro, aqui no Brasil, é amplo o suficiente para comportar uma profusão de editoras concorrentes, porém não parece muito diversificado. Tão logo as obras de algum escritor famoso, nacional ou estrangeiro, seja Graciliano Ramos ou George Orwell, caírem em domínio público, são lançadas por várias empresas simultaneamente, de modo que o mesmo conteúdo fica circulando com capas diferentes. Tenho a impressão de que os mesmos títulos comercialmente viáveis são publicados e republicados o tempo todo, enquanto diversos outros, cujo potencial lucrativo se apresenta menor, permanecem no limbo editorial. A literatura russa, por exemplo, não se limita aos nomes de Dostoiévski e de Tolstói, que ocupam um espaço enorme em nossas livrarias; dezenas de autores menos aclamados, mas igualmente dignos de ser lidos, esperam pela sua vez de vir a lume. Espero, por minha parte, que a Lume (e juro que o trocadilho não foi premeditado...) consiga preencher, na medida das suas forças, essa lacuna cultural!
4) E com relação a Últimas Páginas do Diário de uma Mulher? Qual a importância desta novela para a literatura russa e mundial?
Oleg Almeida: Escrita quase oito décadas depois de Herói da nossa época, essa novela espelha as mudanças ocorridas na sociedade russa em princípios do século XX, com especial destaque para o niilismo moral que a dominou às vésperas da revolução comunista. As “malditas” questões da emancipação feminina e do amor livre são abordadas nela com uma franqueza inabitual para aquela sociedade essencialmente machista, tanto assim que o número do mensário no qual tinha sido publicada acabou sendo confiscado pelos órgãos policiais da Rússia. Pode-se afirmar, sem exagero algum, que a obra de Briússov é uma das remotas precursoras da “revolução sexual” dos nossos dias, e que isso lhe dá um considerável peso histórico e estético. A revolta comportamental de uma mulher contra a prepotência masculina: não é verdade que este tema sensível ainda está presente e bem atual no mundo inteiro?
5) Há algo que diferencie as suas traduções das de seus colegas? Algum traço que seja específico delas?
Oleg Almeida: Tenho aplicado às minhas atividades profissionais a metodologia da “tradução tecnologicamente precisa”, a qual tende a reduzir ao mínimo todo e qualquer tipo de interferência subjetiva do tradutor nos textos traduzidos. Portanto, quem quer que leia uma das traduções minhas pode ter plena certeza de estar lendo precisamente aquilo que o respectivo autor escreveu em sua língua nativa, sem qualquer alteração ou adaptação feita pela minha mão. O direito de interpretar a meu bel-prazer uma obra antiga e consagrada ao longo dos séculos, seja ela qual for, não me cabe em hipótese alguma!
6) Por fim, poderia falar um pouco sobre o próximo pacote do Selo Terræ Incognitæ? Dos dois próximos livros? O que o leitor brasileiro já pode esperar?
Oleg Almeida: Ah, não! Acho cedo demais falarmos disso agora: que as leitoras e os leitores conheçam primeiro o que já foi traduzido (risos)! Por ora, só posso adiantar que estou trabalhando com dois livros de autores franceses, criados na segunda metade do século XIX e, até hoje, lembrados e apreciados na França, mas quase totalmente ignorados no Brasil... A coleção intitulada Terræ Incognitæ (isto é, “Terras desconhecidas” em latim) está nascendo, e a ideia mestra dela é tão simples quão arrojada: fornecer aos nossos compatriotas um ensejo real de desbravarem aquelas terras misteriosas, de desvendarem seus recônditos, de descobrirem os tesouros espirituais que neles se guardam. Não esperem dessa coleção nada que seja popularesco, repisado ou trivial: um dos seus principais objetivos consiste em renovar-se, ou melhor, em reinventar-se a cada lançamento, a cada livro posto em circulação. Faremos de tudo, eu mesmo e outras pessoas ligadas à Lume, para levar esse plano ambicioso a efeito. Quem viver verá!